Por: Jorge Schemes
A grande ferramenta de transformação social é a educação. Não pode haver mudança, movimentos sociais legítimos e nem mentalidade crítica e cidadã, sem um processo educacional consistente e fundamentado em sólidos princípios, éticos, teóricos e metodológicos. Penso que toda a prática está embasada em pressupostos teóricos, pois não há prática sem teoria e vice-versa, assim, partindo desta premissa, a educação não contém um conhecimento vazio ou descontextualizado.
Também se faz necessário considerar que toda educação é política, não necessariamente no sentido partidário, mas no sentido aristotélico do termo, ou seja, como dizia Aristóteles: "o ser humano é um animal político". A educação, por ter um conteúdo significativo com a realidade histórico-social do indivíduo, promove esse movimento político de construção de uma sociedade participativa. Quando um conteúdo tem vínculo com a realidade do sujeito, ele tem significado, e quando tem significado se torna relevante, e aquilo que é relevante para o indivíduo passa a ser usado em seu cotidiano como ferramenta política, no sentido de promover a mobilização social e consequentemente as mudanças.
Assim, penso que participar de um processo educacional e promover o conhecimento historicamente construído pela humanidade, pode ser um primeiro passo para a construção de uma visão de mundo mais crítica e participativa. Como professor universitário, desejo dar minha parcela de contribuição ao utilizar os conhecimentos construídos em minha prática pedagógica em sala de aula, pois trabalho diretamente com a formação de futuros docentes, os quais por sua vez podem ser multiplicadores deste conhecimento mais elaborado e crítico. Como afirmou Francis Bacon: "Saber é poder"! E certamente o conhecimento construído sobre as bases da educação é um dos passos para a prática de uma cidadania mais crítica e participativa, permitindo para muitos a superação da condição de meros súditos.
A incipiente democracia brasileira precisa ser aprendida e praticada pelos cidadãos. A grande massa em nosso país ainda vive como súdito, pensa como súdito e não têm plena consciência de seus direitos e deveres. Ora, o súdito subordina o seu pensamento, os seus sonhos e a sua própria vida, em detrimento de sua felicidade e bem estar. O processo de libertação do pensamento subordinado e fundado no senso comum só pode ser alcançado via educação. Essa libertação, lembrando a alegoria da caverna de Platão, não é algo indolor a nível cognitivo, pois bate de frente com dogmas, valores, tradições e preconceitos aprendidos.
Todavia, não se trata de qualquer educação, e muito menos de qualquer educador. Há educadores comprometidos e há mercenários da educação. Portanto, penso que, como dizia Paulo Freire, "somos seres da transformação e não da estagnação", ou seja, se de fato sonhamos, e sonhar é utopia, e a utopia nos dá esperança, então é porque somos capazes de acreditar em mudança de mentalidade, de pensamento. Como dizia Sócrates: "aquele que deseja mudar o mundo, deve primeiro, mudar a si mesmo". A desconstrução e a constante reconstrução do pensamento só podem ocorrer dentro de um processo dialético, contemplando as diferenças e a multiculturalidade presente neste tempo histórico e social. Ao participar deste processo educacional como um projeto político e civilizatório para todos, faz-se necessário uma abordagem pedagógica sócio histórica e uma concepção histórico-social de ser humano.
A concepção metafísica de ser humano, bem como a concepção naturalista ou cientificista são excludentes, pois objetivam a uniformidade onde há diversidade, além de fragmentar e diluir o todo. Penso que os movimentos sociais legítimos e a participação da sociedade no controle social das ações do Estado só serão difundidos e praticados pela grande massa deste país quando a educação der um salto de qualidade. Não basta apenas mais verba pública, faz-se necessário um projeto que contemple o todo, desde a formação do professor até as questões ligadas a infraestrutura, salário, recursos didático-metodológicos, acesso as tecnologias e reformulação do espaço escolar. Porque um dos problemas que atinge a educação hoje é que há uma verdadeira disritmia entre o que ocorre dentro da escola e o que ocorre na sociedade.
Assim, na educação ainda temos um modelo medieval, com formatação medieval e o que é pior, com mentalidade medieval. Desta maneira, penso que o desafio de multiplicar o conhecimento construído historicamente pela humanidade não está apenas limitado ao entendimento teórico. Contudo, por meio de uma educação libertadora, lembrando a filosofia da libertação de Enrique Dussel, mantenho a grande utopia de um país escolarizado, alfabetizado e letrado, com pensamento próprio e não apenas como um mero refletor do pensamento acabado daqueles que detém o poder político, econômico e cultural. Particularmente não sou a favor de extremos, os extremos são sempre perniciosos e perigosos, mesmo que sejam aparentemente positivos. Como dizia Aristóteles: "A virtude (ética) nunca é encontrada nos extremos, mas no meio termo, no equilíbrio". Esta ética aristotélica do meio termo é fundamental para a tomada de decisões mais bem fundamentadas e legítimas. Pois afinal, o principal objetivo da ética é o bem, individual (para si) e coletivo (para os demais).
O fato da sala de aula poder ser um espaço democrático é importante para a educação, pois o professor tem autoridade de cátedra, e pode, se assim o desejar e se estiver preparado, questionar o status quo social, ou, se for o caso, ser um mero reprodutor das ideologias da classe dominante. A educação, como um prática laica, é arma de combate social, é alimento e combustível para o pensamento crítico e para uma atitude mais cidadã de transformação social. Embora a constituição estabeleça a separação entre Igreja e Estado, o que presenciamos na prática é uma continuação de interesses ideológicos e religiosos que muitas vezes subjugam o pensamento autêntico. Marx diria que a religião como instrumento ideológico é o ópio do povo.
Há dois lados nesta questão, o primeiro faz referência a uma crítica da religião como alienadora, o outro lado é positivo, uma vez que o ópio na época de Marx servia também como remédio anestésico, a religião é necessária para a cura da alma. O que não dá para admitir é a pessoa usar apenas o mito e os dogmas como leitura de mundo e da realidade. Há outras formas de abordagem do real, dentre elas cito a arte, a filosofia e a ciência. Aí entra a educação, promovendo a atitude crítica, a atitude filosófica e a reflexão filosófica, ou seja, libertando o indivíduo da caverna. Todavia, nem todos estão prontos para sair do senso comum em direção a luz do conhecimento crítico, mesmo muitos professores. Porque, em minha opinião, mexer na zona de conforto incomoda. Aliás, a reflexão filosófica sempre incomodou os poderosos, por essa razão não é por acaso que em regimes políticos totalitários a filosofia a a arte são banidos ou reprimidos.
Todo processo educativo que se preze busca a autonomia do indivíduo. Essa autonomia envolve aspectos morais e intelectuais. Porque o objetivo da verdadeira educação é educar para a liberdade. Volto a pensar na questão dos extremos. Em relação a liberdade há dois extremos. De um lado temos aqueles que acreditam que não pode haver liberdade, pois estamos entregues a um certo determinismo, então para que buscá-la? Estes vivem pelo princípio da hetoronomia (norma ou lei que vem de fora, que é imposta). Do outro lado há aqueles que defendem a tese da liberdade absoluta, plena e sem limites. Conduzem a educação e seus processos dentro do princípio da anomia (ausência de normas ou leis). Lembrando novamente a ética aristotélica do meio termo, podemos concluir que estes dois pólos não são o ideal na busca pela construção da liberdade. Então onde está a virtude? Primeiro, penso, devemos entender a liberdade como uma busca constante que se dá no contexto histórico-social onde cada indivíduo está inserido. A liberdade não está pronta e acabada. Ela precisa ser construída dentro de um processo dialético. O sujeito como ente social desempenha o papel de ator e autor de sua própria liberdade. Essa busca está fundamentada no princípio da autonomia (aquele que dá a si mesmo as próprias leis). Entendendo que a palavra "nomia" em grego significa lei. Então, para Kant, há um imperativo categórico no sentido moral que me impõe os limites éticos e morais de minhas ações como ser livre ou em busca da liberdade.
Ou seja, a verdadeira liberdade está norteada pela ética. Na concepção de Platão o objetivo final da ética é atingir o bem, primeiramente para si e depois para os demais. Sempre que falhamos em atingir o bem, falhamos com a ética. Assim, educar para a liberdade envolve a construção da liberdade como uma busca utópica. Ora, a utopia não é de todo negativa, aliás, ela é o combustível para os nossos sonhos e alimenta as nossas esperanças. Deste modo, educar para a liberdade significa construir a autonomia no ser, embora devamos considerar que este não é um processo pontual, para ocorrer num dado momento da vida, mas é um processo contínuo. Talvez no dia da nossa morte descubramos que nunca fomos livres de fato. Então, a educação para a autonomia envolve o distanciamento da heteronomia, ou seja, significa construir a liberdade transportando o indivíduo dos princípios da anomia e da heteronomia para o princípio da autonomia moral, ética e intelectual. Pensando nisso como uma breve fundamentação teórica, acredito que dentro de um contexto democrático recente, a educação no Brasil está passando de um extremo (heteronomia) para outro (anomia).
No sentido moral e ético isso é muito grave, pois, se não tivéssemos outra opção, a escolha preferível entre um extremo e outro seria a heteronomia (princípio de condução moral próprio de um regime político autoritário). Contudo, como vivemos em um Estado democrático e de direitos, estes dois extremos são inapropriados, cabendo apenas a opção da busca pela autonomia. Como vivemos numa fase histórica de mudança de paradigma na educação, onde a escola tradicional convive com as propostas relativamente recentes da escola nova, o desafio maior está na formação continuada dos docentes. Mudar a concepção de homem, de sociedade e de educação não é uma tarefa tão simples quanto parece, pois temos sobre nós o peso da tradição educacional construída por mais de dois milênios.
Pessoalmente acredito que isso só é possível pela desconstrução de uma mentalidade arcaica e medieval que permeia o imaginário popular e o inconsciente coletivo dos profissionais da educação. Esse é um processo dialético contínuo e de amadurecimento humano, pois os professores precisam aprender a discutir idéias sem levar para o lado pessoal. Deste modo, posso ponderar que um dos principais entraves para a qualidade na educação é a má qualidade na formação docente. Muitas vezes o problema não é o aluno, aliás, na grande maioria dos casos não é, então de quem é a responsabilidade maior? Não hesito em responder que é do professor. Enquanto os professores tiverem uma concepção metafísica e cientificista do ser humano eles terão uma concepção uniformista e fragmentada da educação. É justamente por conta destas concepções tradicionais que há exclusão, segregação, discriminação e preconceito em sala de aula por parte dos professores. Não conseguem, por conta disso, contemplar as inteligências múltiplas, as diferenças e a diversidade.
Por conta destas concepções abusam do poder que lhes é dado e se tornam autoritários, perdendo a autoridade como mestres de um ofício artesanal. Perdem com isso a dimensão do humano no ser e praticam a pedagogia do terror, tornando-se assim terroristas da educação, mercenários que trabalham apenas pelo salário, verdadeiros destruidores de talentos e sonhos, ladrões da alma infanto-juvenil, finalmente, um verdadeiro perigo para a sociedade.
A autonomia ética e moral é uma busca contínua e sem fim, a qual se dá dentro de um processo dialético e inserido num contexto histórico-social de diversidade cultural e pluralismo axiológico. Saber conviver com o diferente é o maior desafio no universo multicultural no qual estamos inseridos. Há tantas morais quantas são os grupos sociais. Consequentemente há escalas de valores e interesses conflitantes. Este cenário moral de diversidade é importante para a educação e para o educador, pois não permite que a pedagogia se torne dogmática e que a sala de aula se transforme em um espaço de abuso ditatorial. Contudo, como pensava Emmanuel Lévinas, não há lugar na sociedade plural para qualquer fundamentação ética, é imperativo resgatar a proposta da ética da alteridade como filosofia primeira, mesmo antes da ontologia. O capitalismo faz uso de uma "ética" utilitarista (onde os fins justificam os meios).
Como educadores temos que ter o cuidado para não cairmos apenas no "discurso ético", pois para a grande maioria dos nossos alunos ainda somos referência. Deste modo, podemos entender a ética como uma encarnação e não apenas como discurso. Pois todo educador é professor de moral, tenha consciência disso ou não. Há um "discurso" ético e moral subentendido em nossas práticas. A moral se revela de maneira mais clara para os alunos no currículo oculto da escola. Portanto, ninguém é neutro quando faz educação.
Cada educador precisa ter consciência da sua influência quando atua em sala de aula e dentro da escola. Precisa sempre estar questionando a sua prática em três eixos básicos: 1. Que tipo de homem desejo formar? 2. Com que tipo de educação? 3. E para qual sociedade? Penso que ao educar, o professor deveria almejar a construção de um sujeito autônomo, reflexivo e crítico, utilizando-se da sua influência e de uma educação libertadora para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária, cidadã e fraterna.
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